Com ou sem tecnologia, com muito ou pouco investimento, abordar a saúde mental nas organizações é possível. Conheça casos de empresas que implementaram diferentes iniciativas
Cuidando de quem cuida. Com esse mote, a campanha lançada pelo Hospital Sírio Libanês no início de 2014 tinha como objetivo atender funcionários do hospital e seus familiares, resgatando uma figura bastante comum nos cuidados de saúde de antigamente: o médico da família. Com equipes multidisciplinares, compostas por enfermeiros e nutricionistas, esses médicos passaram a ser a referência de colaboradores e dependentes, tanto para condições que se manifestam pela primeira vez quanto para a recorrência de condições anteriores. O programa deu tão certo que, em sua segunda fase, em 2017, a saúde mental entrou na pauta da campanha.
“Ainda que o médico de família tenha uma visão ampliada também para o diagnóstico e o tratamento dos quadros mentais, entendemos que era fundamental iniciar um trabalho de mapeamento das doenças mais comuns como estresse, depressão e burnout. Dessa forma, buscamos no mercado um parceiro para nos auxiliar na avaliação de todos os colaboradores da instituição para o diagnóstico e a avaliação de risco para essas doenças, bem como para a implantação de medidas terapêuticas e de prevenção”, explica o médico Gentil Jorge Alves Júnior, superintendente de saúde corporativa do hospital.
A empresa escolhida foi a Gattaz Health & Results, que mapeou cerca de 9 mil funcionários, utilizando um software proprietário desenvolvido para essa finalidade. “A interface para o usuário é bem simples. Em apenas 10 minutos, com um tablet ou celular, o colaborador responde ao nosso questionário e, logo em seguida, já recebe um feedback sobre sua saúde mental atual. Caso seja identificada a necessidade de tratamento, no próprio relatório ele encontra os passos seguintes propostos pelo programa”, explica Tânia Ferraz Alves, médica psiquiatra que coordena as áreas clínico-psiquiátricas da Gattaz.
A adesão ao questionário online foi de 60%, taxa considerada acima da média para esse tipo de ação. Isso porque, antes de iniciar a coleta de dados, o Sírio investiu em uma campanha antiestigma, com palestras e vídeos curtos que explicavam o propósito da ação, abordavam os tipos de doenças mentais e, principalmente, ressaltavam a confidencialidade de todo o processo.
Com os dados coletados, a Gattaz produziu uma série de relatórios para que o Sírio pudesse ter uma visão clara não só da predominância de doenças mentais em sua população como também das áreas do hospital em que a incidência delas era maior. Assim, os planos de ações foram direcionados e priorizados de acordo com as necessidades dos times. “Para o cliente, as informações são sempre agrupadas por áreas e equipes, de forma que a identificação do paciente seja preservada”, comenta Alves.
Para melhorar o quadro geral de saúde mental, o programa tinha duas frentes de atuação. A primeira delas era o tratamento individualizado dos pacientes, em que o funcionário com quadro leve a moderado era tratado pelo médico da família, enquanto os casos mais graves eram encaminhados ao psiquiatra.
A segunda frente tinha como foco o grupo de liderança do hospital, que foi treinado para compreender o papel do líder na promoção da saúde mental no ambiente de trabalho. “Envolver e treinar as lideranças é fundamental, pois, no dia a dia, são elas que vão identificar em seus times sinais de depressão, estresse, ansiedade, entre outros. Além disso, como fator externo, a pressão, a cobrança e os conflitos podem impactar diretamente a saúde mental de um colaborador, e é importante que os líderes tenham consciência e saibam gerenciar o estresse em seus times”, explica Wagner Gattaz, CEO da Gattaz Health & Results.
Além das informações passadas pelos médicos, o programa coletava dados diretamente dos pacientes em tratamento. O diagnóstico inicial também foi reaplicado 6 e 12 meses após o início do programa, o que permitiu uma mensuração precisa dos resultados obtidos pelo Sírio. “Só no quadro de depressão, por exemplo, na comparação das prevalências entre as amostras totais da primeira e segunda fases, o número caiu de 35% para 24%. Isso quer dizer que, após um ano de acompanhamento, 11% das pessoas já estavam tratadas e fora do programa. Os números são concretos, mas, como o ganho de qualidade de vida e de produtividade são difíceis de mensurar, costumamos dizer que o retorno do investimento pode ser observado pela redução do custo do presenteísmo. Se 11% dos funcionários estavam lá só de corpo presente, produzindo aquém de sua capacidade, após o tratamento esse time voltou a performar em seu pleno potencial. É como se a empresa aumentasse o seu quadro de colaboradores em 11%”, detalha Gattaz.
Disseminando o bem-estar
Enquanto algumas empresas apostam em programas que buscam resolver a questão da saúde mental de maneira sistemática, outras investem em práticas que disseminam o bem-estar por acreditarem que o retorno vale a pena.
Esse é o caso da Resultados Digitais, empresa de tecnologia sediada em Florianópolis que desde 2018 investe em uma nova área de wellness (bem-estar). “Fizemos uma visita ao Vale do Silício para conhecer as boas práticas de empresas de tecnologia e notamos que várias empresas de lá já estavam implantando programas de wellness. Temos muito orgulho de sermos consideradas uma das melhores empresas para se trabalhar no nosso mercado e entendemos que esse era um ponto importante para mantermos a vanguarda das nossas boas práticas”, conta Anderson Nielson, diretor de talent management da Resultados Digitais (RD).
O primeiro passo foi contratar uma psicóloga, que passou a acolher os colaboradores da RD. “O fato de ser uma profissional terceirizada trouxe mais segurança para que as pessoas pudessem se abrir, em um formato mais parecido com um bate-papo. Não se trata de uma sessão de terapia”, explica Nielson. O executivo acrescenta que o funcionário pode trazer tanto questões simples do dia a dia, como buscar ajuda para se preparar para uma conversa difícil com o líder, ou questões mais complexas, que muitas vezes são direcionadas para um profissional especializado, como um psiquiatra.
“Ainda é muito cedo para saber o quanto a área de wellness traz de retorno em produtividade, mas um dado que nos anima vem do nosso eNPS (Employee Net Promoter Score). As reclamações de pessoas que reportavam picos de estresse ou diziam que nosso ambiente não estava muito saudável caíram significativamente. É difícil saber como isso impacta os resultados da empresa, mas para nós já é uma métrica positiva”, completa Nielson.
Já a gigante do setor de consultoria estratégica Accenture vem implementando há dois anos um programa de bem-estar chamado Truly Human. Segundo Sandra Gioffi, diretora executiva para digital culture adoption da Accenture, ele é baseado em um modelo de avaliação focado em pontos fortes, não em gaps. “Utilizamos a metodologia descrita por Marcus Buckingham e Donald O. Clifton no livro Descubra seus pontos fortes. Todo mundo na Accenture é avaliado frente a seus pontos fortes. O conceito é entender no que você é bom e potencializar isso. Essas ideias estão muito ligadas a comportamentos como empatia, colaboração, relacionamento etc.”
O Truly Human tem quatro dimensões: Corpo (comer bem, dormir bem etc.), Mente (foco, habilidades), Coração (pertencimento a uma comunidade, mindset inclusivo) e Alma (propósito, deixar um legado para a geração futura, voluntariado). Com esse framework, a Accenture realiza várias iniciativas, como a implementação de treinamentos em coach, em que os líderes são certificados para poder acompanhar os funcionários, sempre tentando estimular os pontos fortes de cada um. “Acreditamos que o líder precisa estar atento ao seu time e promover uma cultura de saúde mental, olhando o colaborador de maneira integral”, explica Gioffi.
No caso de necessidade de ajuda de um psicólogo, a Accenture reembolsa parte da terapia. A empresa também possui um programa de mentoring, no qual um colaborador mentora o outro, em uma escada até o presidente, ampliando a capacidade de escuta ativa em todos os níveis da organização. “O terapeuta é um dos remédios, a questão maior é estar atento aos seus colaboradores e a você mesmo”, complementa Gioffi.
Outro exemplo interessante é da Swiss Re, a maior companhia de seguros e resseguros do mundo, que recentemente disponibilizou um serviço de apoio psicológico, financeiro e jurídico para seus funcionários. “Contratamos a Optum, que fornece esse apoio por telefone, para que o colaborador possa se abrir e encontrar apoio em questões complexas”, explica Cristina Aiach, head de RH da Swiss Re. A executiva ainda acrescenta que a opção pelo serviço terceirizado foi feita justamente para garantir o apoio, sem comprometer a confiabilidade dos dados. “Dessa forma, acreditamos que o colaborador se sente mais à vontade para compartilhar assuntos pessoais e profissionais, aos quais nem a liderança, nem o RH têm acesso”.
“Acreditamos que o líder precisa estar atento ao seu time e promover uma cultura de saúde mental, olhando o colaborador de maneira integral”
Para Aiach, o primeiro passo para implantar uma política de saúde mental é mapear a empresa, fazendo uma pesquisa de pulso, para ver como bate o coração da organização. “O que eu tenho visto é que, de uns anos para cá, os funcionários têm se engajado muito com essas pesquisas. Eles de fato falam o que pensam. No passado, não era tão comum conseguir extrair a verdade sobre a situação emocional de cada um. Acho que as redes sociais estimularam essa participação nos últimos anos. Existe toda essa discussão sobre como as redes sociais são perversas, causando discussões, brigas e até traumas, mas existe um lado curativo também, porque as pessoas encontram respostas e ajuda nelas”.
Saúde e Tecnologia
A tecnologia, cada vez mais, está sendo considerada uma aliada das pessoas e das empresas quando o assunto é saúde mental. Além dos exemplos citados ao longo deste dossiê, um estudo conduzido na Inglaterra com 2 mil trabalhadores concluiu que as pessoas estão cada vez mais abertas a adotar tecnologias como apoio a todos os aspectos de seu bem-estar mental. O uso mais frequente ainda é a busca online por informações (82% já o fazem ou considerariam fazer), seguido por linhas de apoio online e os serviços de aconselhamento com 72%, bem como salas de chat (67%) e consultas online (65%). Ainda segundo o relatório produzido e divulgado pela Accenture do Reino Unido em 2018, esses dados sugerem que as pessoas valorizam o acesso a serviços no modelo “anytime, anywhere” (a qualquer hora, em qualquer lugar).
Mas será que o tratamento com o apoio da tecnologia traz o mesmo resultado do que o presencial? Segundo Ines Hungerbuehler, psicóloga e PhD em psiquiatria, que coordenou uma pesquisa pioneira no Brasil sobre a eficácia da telepsiquiatria no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, a resposta é sim. O estudo, realizado entre 2011 e 2015, recrutou pacientes com depressão leve e moderada, e separou-os em dois grupos: um que foi atendido no modelo tradicional, com consultas presenciais, e o outro com apoio da tecnologia, em consultas por videochamada.
“Do ponto de vista clínico, os resultados obtidos nos dois grupos não tiveram uma diferença estatística relevante. Portanto, a conclusão foi que o tratamento psiquiátrico presencial ou por videochamada é igualmente eficaz no tratamento de depressão de grau leve a moderada”, explica Hungerbuehler. Ainda segundo a especialista, ao final do estudo, o grupo atendido com o apoio da tecnologia reportou altos índices de satisfação com a forma de atendimento. “Tínhamos preocupação de que a videochamada pudesse criar uma barreira para o vínculo entre médico e paciente, tão importante no tratamento de doenças mentais. Mas o que observamos foi justamente o contrário: a distância física fez com que os pacientes se abrissem ainda mais, pois geralmente eles estavam em um ambiente onde se sentiam seguros, como residências ou salas privadas no trabalho. Fora o tempo economizado com o deslocamento até o hospital, que também foi muito elogiado pelos participantes”, conta Hungerbuehler.
Apesar dos resultados positivos obtidos por Hungerbuehler, a conclusão da pesquisadora não foi suficiente para mudar as regras impostas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), no que tange à telemedicina. Em uma resolução divulgada em fevereiro de 2019, a prática da telemedicina havia sido regulamentada, mas apenas 20 dias depois o Conselho revogou sua própria decisão. Até o fechamento desta edição, o assunto seguia sem conclusão no CFM.
Se na área médica a adoção da videochamada segue a passos lentos, no mundo da psicologia já é realidade. A Vittude, startup que nasceu com a missão de conectar pessoas que queriam fazer terapia a psicólogos, está crescendo aceleradamente. “Tive depressão e descobri que procurar um psicólogo era uma coisa difícil. Mesmo tendo plano de saúde, as informações eram escassas e eu me sentia dependente de indicações de amigos e familiares”, conta Tatiana Pimenta, CEO e fundadora da Vittude. De uma dificuldade pessoal nasceu um negócio, que hoje já está presente em mais de 50 países, com mais de 12 mil usuários e cerca de 3 mil psicólogos cadastrados.
Em princípio, Tatiana mirava no mercado de pessoa física. Porém, quando a empresa passava por um processo de aceleração de startups, o contato com empresas de tecnologia que estavam nessa fase de crescimento fez Pimenta perceber que todas tinham o mesmo problema: a pressão por entregar resultados começava a aparecer com a necessidade de trazer mais pessoas capacitadas para o time. Isso gerava estresse pelo acúmulo de horas trabalhadas, redução do sono, descuido com alimentação, entre outros fatores que impactavam diretamente a saúde mental dos colaboradores.
“Os empreendedores notavam que algumas pessoas estavam rendendo menos, apesar de estarem presentes, e os primeiros casos de afastamentos por estresse começaram a aparecer. Foi então que passamos a receber contatos de algumas empresas de tecnologia do mesmo ecossistema em que a gente estava envolvido, perguntando se fazíamos algum trabalho direcionado para empresas e não só para pessoa física. Começamos atendendo a Iugu, de meios de pagamento, depois fechamos com eduK, 99, Resultados Digitais, entre outras”, conta Pimenta.
Foi assim que a Vittude passou a ser fornecedora de empresas que, mesmo em estágio inicial, queriam investir na saúde mental de seus colaboradores. “O modelo que a gente acredita é aquele em que a empresa paga pelo menos a metade da terapia dos funcionários. Até porque muita gente não faz terapia alegando que é caro, mas se a empresa paga uma parte e incentiva a prática, muitos colaboradores acabam aderindo”, complementa a empreendedora.
Robô Conselheiro
Conversar com alguém que possa orientar e dar conselhos é, sem dúvida, um excelente caminho para quem deseja começar um tratamento de saúde mental. Mas e se você descobrisse que esse “alguém” é, na verdade, um robô? A TNH Health, empresa de gestão de saúde populacional, criou a Vicky, um robô que conversa com funcionários e, ao mesmo tempo, extrai informações sobre o comportamento deles que possam apontar possíveis transtornos de saúde mental. Trata-se de um chatbot para Facebook Messenger, WhatsApp ou aplicativo próprio, que, de um jeito amigável e utilizando tecnologia de linguagem natural, dá dicas e conselhos para seus usuários.
Ainda que a interface seja amigável, em segundo plano, vários instrumentos clínicos são utilizados para avaliar a ocorrência de uma série de transtornos, como estresse crônico, ansiedade, depressão, abuso de substâncias como álcool e distúrbios do sono. Além de identificar o colaborador que já desenvolveu um transtorno mental ou está em situação de risco, a ferramenta monitora o humor e o clima na empresa em tempo real. “Com a Vicky, o RH consegue ver por departamento ou por área como está o temperamento dos colaboradores”, diz Michael Kapps, CEO da TNH Health.
Sobre a aceitação da tecnologia por parte dos funcionários, Kapps diz que é boa. “Criamos uma campanha para os colaboradores começarem a conversar com a Vicky e cerca de metade das pessoas que têm acesso ao chatbot permanece conversando semanalmente com ela”, complementa o CEO.
Para Kapps, a utilização de IA para resolver questões de recursos humanos é um caminho sem volta. “Existem poucas opções para o RH: o orçamento é pequeno, muitas vezes não dá para contratar um psicólogo e terapia online ainda é um processo caro, em especial quando a empresa atua em setores com margens apertadas. Com a Vicky, funcionários do comércio e caminhoneiros, por exemplo, podem receber as primeiras orientações. Assim, conseguimos cobrir uma parte importante da população que acaba ficando sem diagnóstico por não ter acesso a esse tipo de serviço.”
Que existem vários caminhos para as empresas começarem a investir na saúde mental de seus funcionários, não há mais dúvidas. O desafio, de agora em diante, é fazer com o que o tema passe a figurar na pauta estratégica das lideranças, independentemente do porte ou do segmento das empresas. “As teorias tradicionais para melhorar o desempenho de uma organização já não funcionam mais. Estamos muito avançados em teorias da saúde mental, mas as organizações não vão na mesma velocidade, principalmente pela questão financeira”, comenta Eliana Totti, psicóloga com uma carreira de 20 anos em departamentos de RH.
De fato, sem investimento, programas mais estruturados ficam inviáveis. Entretanto, muitas vezes as pequenas iniciativas são as faíscas que faltam para desencadear transformações importantes dentro das organizações. Se você decidir riscar esse fósforo, caro leitor, HSM Management terá cumprido seu papel com este dossiê.